Sunday 14 March 2010

Capitulo 8: A vida e um coracao que se recusa a bater

Ha alguns dias ja tinha decidido que nao iria mais a escola, ja nao tinha mais paciencia ou animo, ao inves disso passei a trabalhar em tempo integral, aprendia mais com os livros que com Paul e suas aulas escrotas. Quando tinha tempo livre e disposicao gostava de ir ao cinema ou teatro, perdi a conta de quantas vezes fui ver “Rei Leao” e “O Fantasma da Opera” no teatro. Aos poucos voce se acostuma a ser so e a fazer as coisas sozinho, um pouco eu quis assim, o problema que eu sempre acabo me aborrecendo com os outros, lembro deste garoto, Corey, que conheci logo quando cheguei em Londres. Ele nasceu em Londres, mas seu pai era jamaicano. “E por isso que tenho esse cabelo rastafari” dizia ele. No comeco era divertido sair com ele, davamos boas risadas, mas o problema era que ele falava pelos cotovelos e sempre estava perguntando a minha opiniao sobre as coisas. Toda vez que conhecia uma garota ja dizia estar apaixonado, passava alguns dias a mesma historia se repetia. Chegou um momento que comecei a evita-lo e muitas vezes ignora-lo. Com o tempo nos viamos cada vez menos e logo o barbante se rompeu. A partir dai passei a fazer as coisas sozinho, quando alguem tentava se aproximar eu me tornava frio e distante. Acho que e este lugar que faz isso com a gente, aos poucos nos tornamos mais frios e duros que o concreto que edifica essa cidade. Pra falar a verdade eu nao sei onde esta o problema, nao consigo aceitar que a vida e isso ai que vemos todos os dias, me assusta a ideia de sermos tao mesquinhos e levianos. Hoje tudo e compreensivel, tudo e perdoado e tudo e esquecido. Vivemos na era da pseudo-liberdade, nao adimitimos sermos chamados de caretas ou “outfit”, entao banalizamos aquilo que realmente e importante e recriminamos o que e banal. Somos seres egoistas e a cada dia nos empurramos mais e mais nesse teatro de putas alienadas. Sera que ninguem percebe que o que chamam de lucidez e o mais agressivo nivel de loucura? Nesta vida so ha dois caminhos a seguir: no primeiro voce diz amem e termina sendo mais uma marionete, no outro voce se recusa a ver com olhos velhos e termina com uma bala na cabeca.

Quando me levantei na manha de quarta-feira para ir a livraria, pensei porque essas coisas acontecem, em um dia sua vida e um emaranhado de barbantes e relacoes, no outro e um espaco vazio onde o que se ouve e apenas o som dos seus proprios passos. Cheguei perto da janela do meu quarto e fiquei vendo a chuva fina cair na grama do quintal, as arvores ja estavam ficando floridas, logo sera primavera, pensei, mas quanto ainda falta para meu outono acabar? As vezes finjo esquecer que o outono so acaba quando se deixa as folhas cairem. Sai de casa sem tomar cafe, amanheci com o estomago embrulhado, nao sabia bem ao certo porque. Quando cheguei a livraria, a senhora Williams nao parecia estar muito feliz em me ver. Fausto! Quer dizer que agora voce escolhe quando vem trabalhar e quando nao vem? Olhe pra voce, voce esta horrivel! E essa cara? Andou se metendo em brigas? Eu sabia que essa sua lingua um dia iria lhe causar problemas! Cara, aquela mulher nao parava mais de falar, parecia que o sermao nao teria fim, por meia hora tive que escutar ela se queixar da minha aparencia, meu comportamento e minhas atitudes na vida. Senhora Williams, so estou tendo um dia de chuva enquanto todos estao tendo uma tarde de sol. Voce tem muito trabalho a fazer Fausto, espero ver todos os livros catalogados ate o fim da tarde, nao me interessa se faz sol ou chuva no seu mundo. Nem com minha faceta poetica eu quebrava aquela velha.

Quando eram quase seis daquela tarde o telefone da livraria tocou e ja estava sozinho na loja, a senhora Williams havia partido uma hora antes. Quando atendi, uma voz do outro lado perguntava num ingles pobre “Mr Fausto is here”, aquela voz me parecia familiar, quando disse que era eu e indaguei o que ele queria, a voz ficou um pouco mais seria e disse: Filho, esta na hora de voce voltar a casa de seus pais. Era meu tio Carlos. Voce sabe que nao me dou bem com os fascistas. Garoto deixe de bobagem, voce sabe como seu pai e e voce sabe como sua mae sofre com isso tudo. Meu pai e tao covarde que pediu pra voce ligar para mim, por mim ele poderia morrer. Fausto, seu pai esta morrendo, por isso liguei pra voce. A vida e um coracao que se recusa a bater.

Wednesday 29 July 2009

Capitulo 7: A vida e um murro em ponta de faca

Meu corpo apresenta os primeiros sintomas de rejeição, de anos calado e engolindo tudo, aceitando a paralisia de uma cabeça que não pensa e toma como verdade os boletins e as manchetes. Enchem-nos de lixo maquiado e juram que e a mais pura verdade, amanha tudo será desmentido e irão jurar que nunca foi dito. Quando se abre os olhos e sai da caverna, você já não acredita nas sombras. Reação, reação clama meu coração e nas veias o sangue da lugar a raiva, “a raiva e um dom se você souber usá-la”. Quando se atravessa este muro, você não consegue mais voltar, não não, o preço que se paga pela liberdade e a solidão. Essas coisas corroem meus ossos, o conformismo e a alienação daqueles que aceitam tudo calado. Estamos mais preocupados com o que fazer no final de semana do que com os nossos ideais, tudo se resolve e se esquece com a cabeça vazia e o copo cheio. Penso naqueles que tentaram ver alem das sombras, naqueles que se libertaram e foram marginalizados, pois ainda que silencie a voz, o espírito permanecera. Há tanta coisa errada e já não há nervos que se declarem de aço.
Aqui neste banco, fico pensando onde essa gente estava quando o movimento Zapatista lutava por democracia, justiça e liberdade no México. O que seus pais e seus avos faziam enquanto Malcolm X se tornava líder do movimento negro nos anos 60. Provavelmente faziam o que você faz agora, aguardavam ansiosos mais um capitulo da novela, achando que o problema dos outros não eram seus problemas. E estamos fadados a repetir o mesmo erro novamente e novamente. Enquanto a media manipula, corrompe e te convence que há uma guerra, Rockefeller enriquece ainda mais, mas talvez você nem saiba quem e Rockefeller e isso só mostra o quanto você vive em um conto de fadas. A vida e um murro em ponta de faca.
Cara, eu só podia estar ficando maluco, meu coração palpitava feito louco e minhas mãos tremiam. Não entendo bem ao certo o porque disto tudo, não sei porque pensei em todas essas coisas justamente neste momento, justamente neste banco. E difícil explicar, mas nunca me senti assim como me sinto aos 21 anos. Em tudo vejo algo que me desagrada, me aborrece ou me chateia. Eu não agüento aquele papo furado de que tudo na vida existe um porque, “aqui se faz, aqui se paga”, quanto mais ainda terei que pagar ate conseguir fazer algo? O que realmente me aborrece e as pessoas sempre tentarem explicar tudo, sempre darem espaço ao conformismo. Em algum momento eu errei os passos da dança, em algum momento eu quis fazer meus próprios passos e me perdi. Acho que todo o meu desespero e todo esse sentimento distorcido e devido a minha frustração de não ser capaz de mostrar a todos o quão irônico e as nossas vidas. Um dia verei essa cidade em chamas e sorrindo direi adeus a “zeitgeist”. A vida e o ranger dos dentes. Na cidade, os maquinismos continuavam em fúria e a noite que caia era mais uma vez sem lua e sem estrelas.
Fiquei ali vendo o rio horas e horas, pensei na minha vida, nas minhas dores fingidas, nas relações que ao pouco foram se desgastando ate romper-se o barbante. Sentia-me sozinho e já não havia pessoa, coisa ou lugar que eu pudesse chamar de meu. Quando cansei de olhar o rio, resolvi voltar para casa, por cisma ou outra coisa, fiz o caminho de volta a pe, no fundo, o desejo de nunca chegar. Pelas ruas, a velha historia com rostos diferentes. Prostitutas, playboys e traficantes são vistos juntos, a noite traz com a escuridão a realidade das pessoas. A garota devia ter uns 25 anos, tinha o cabelo encaracolado e loiro, que combinava muito bem com seus olhos azuis, estava com um vestido preto colado ao corpo, achei engraçado como ela fazia um tremendo esforço para se equilibrar em seu salto. O rapaz ao seu lado tinha a pele escura e dreadlocks que iam ate a cintura, pelo jeito que falava eu apostava que era da Jamaica. O garoto no carro aparentava ter 22 anos, pelo carro e suas roupas ele só podia ser um desses burgueses de Sloane Square. Meu bem, duas gramas de Charlie e eu sou toda sua essa noite, dizia a loira ao rapaz. Garota, eu levo quatro gramas, mas espero que você mostre o que sabe fazer. A loira em êxtase entrava no carro enquanto o rapaz negociava o preço com o traficante. Em minutos o carro partiu sem deixar rastros. Tudo isso aconteceu em frente a um bar que tocava jazz em Tottenham Court Road. A vida são os personagens de uma noite suja.

Friday 26 June 2009

Capitulo 6: Le Havre at Dawn

Após um dia e meio finalmente fui liberado, na saída do hospital a luz me cegava, encostei-me ao muro e ascendi um cigarro. Sentia-me estranho, não sabia por que tudo aquilo me irritava tanto, o barulho dos veículos indo e vindo sem razão, as formigas trabalhadoras com destino incerto, toda essa agitação caótica e perturbadora da cidade. Esse mundo esta fodido e nem e meio dia. Você não deveria fumar, principalmente quando acabou de sair do hospital e depois de tudo o que o medico lhe falou. Era a enfermeira que tinha feito aquela pergunta tola sobre o meu nome, ela estava com roupas normais, não estava com aquele uniforme do hospital. Ela parecia bem mais jovem e bonita com essas roupas, eu arriscaria dizer que ela tinha uns 32 anos ou menos. Eu sei, estou sempre fazendo dessas, ignorando o que os outros me dizem, respondi meio sem jeito. Meu nome e Kasia a propósito, prazer em conhecê-lo. Prazer, meu nome e... Fausto! Eu sei, como iria me esquecer? Ela sorriu. Cara, eu me perdi naquele sorriso, já estava arrependido de ter sido grosso com ela naquele outro dia. Você gostaria de tomar um drink em algum lugar? Não sei da onde eu tirei isso, as vezes as palavras saem da minha boca sem mesmo eu pensar. Você não acha que sou um pouco velha pra você? Aquela pergunta me aborreceu um monte, eu fiquei em silencio, acho que ela notou minha insatisfação. Vamos fazer o seguinte, hoje estou um pouco cansada, quero ir pra casa tomar um banho e descansar, mas este aqui e o meu numero, você me liga algum dia desses e me convida para jantar fora, que tal? Claro! Claro! Ela anotou seu telefone em um papel do bloco de anotações com o símbolo do hospital, me entregou e sorriu novamente. Acho que você deveria ir pra casa também, ficar tanto tempo dentro deste lugar não e fácil. Ela se retirou e pegou um taxi, eu coloquei seu telefone no meu bolso e peguei o primeiro ônibus que parou no ponto.
Dentro do ônibus o mesmo desespero de sempre. No fundo três garotas tocavam musicas extremamente alto, ao lado delas uns senhores de terno e gravata faziam umas caretas de desaprovação. Na minha frente duas mulheres se digladiavam por espaço com seus carrinhos de bebes. Cara, mal tinha entrado naquilo e já estava querendo dar o fora. Novamente a imagem de um rebanho me veio a cabeça, senti um certo enjôo e meu estomago embrulhou. Sempre tive um certo pavor de multidão, principalmente quando me encontro no meio de uma. Quando o ônibus parou tive que me espremer para alcançar a liberdade, quando meus pés tocaram a calcada me desembestei numa corrida histérica, não sabia porque estava correndo, simplesmente aconteceu assim. São desses absurdos que preenchem o nosso ser sem qualquer explicação. Assim fui ate a estação de Embankment, de la resolvi caminhar pela calcada que beira o rio Tamisa. Cara, eu estava exausto, sem contar que ainda tinha alguns roxos das pancadas que tinha levado que doíam pra caramba. Sempre que me sinto assim meio confuso gosto de vir aqui, gosto de ver o rio e os pássaros com seus rituais malucos. Eu sei que há alguma coisa de errado, não sei explicar e as vezes tenho a impressão que todos a minha volta sentem a mesma coisa, quando olho para trás e vejo aqueles velhos amigos que ficaram, e triste olhar nos olhos deles e não ser capaz de ver outra coisa alem de uma luz desfocada que representa a apatia e insatisfação de uma geração inteira. A vida são as cataratas incuráveis em olhos opacos.
Quando os dias estão com essas cores me lembro da minha irma, ela gostava de comparar as cores do céu com os seus pintores favoritos, ela e um bocado engraçada, lembro de como ela costumava chegar aos pés da minha cama durante a noite e conversar sobre todos os assuntos inimagináveis. Você acha que ele gosta mesmo de mim? Será que vamos ter que ir para casa do vô amanha? O que sera de nossas vidas daqui alguns anos Fausto? A primeira vez que viemos para Londres eu tinha doze anos e ela dezesseis, lembro de como ela ficou impressionada com os quadros da National Gallery e como ela se apaixonou por Claude Monet, principalmente pela obra “Impression Sunrise”. Definitivamente foi isso que fez minha Irma estudar arte na Franca alguns anos depois. Agora eu sinto falta dela, sinto falta dela me dizendo que sou mais complicado que as obras de Joan Miro. Aqui neste banco, sozinho por opção ou arte abstrata, penso se Marta também esta a admirar o céu de Monet. A vida são as cores que borram o meu céu.

Sunday 12 April 2009

Capitulo cinco: A vida são as manchetes dos jornais

Já estava cansado de ficar ali naquele quarto, olhando as criaturas que gemiam quietinhos, acanhados e com vergonha nas camas ao lado, o que eu queria mesmo era dar o fora dali. “Você tem que ficar em observação”, a coisa mais estúpida que poderiam me dizer naquele momento e disseram. O relógio pendurado na parede, satisfeito e orgulhoso de seus “tic e tac”, a tortura causada pelo movimento de seus ponteiros e o jornal com sua historias velhas de personagens novos jogado na mesinha ao lado da minha cama. Passei meus olhos sobres as noticias cheias de fontes, fotos, focos, opiniões, criticas e mentiras. Aquele jornal me deixava doente, era como você estivesse lendo a mesma matéria varias vezes, mas com diferentes personagens e temas. Não precisava nem me dar o trabalho de ler toda aquela babaquice, bastava ler o que os espertalhões chamam de lead jornalístico e la você tinha respondido os tais “O que?”, “Como?”, “Onde?”, “Quem?”, “Quando?” e “Por que?”. Patéticos, a estratégia que virou regra, que virou lei e que agora padroniza todas as matérias e seus jornalistas.
Então o que eu comecei a fazer foi dar minha própria versão para as historias que ali estavam, fiz aquilo por horas, lia e pensava numa versão mais interessante, pensava no que se passava na cabeça das pessoas, colocava palavras em suas bocas, matava aqueles que não achava interessante e etc. Eu poderia ser jornalista, basta juntar um bocado de palavras que formem uma historia, dar nome e sobrenome aos personagens e torcer para que aquele editor babaca publique sua matéria. Mas esse nem e o problema, o problema e que estamos tão acostumados a pensar o que os outros pensam, que já deixamos de julgar se tudo aquilo e real e faz sentido, nada se prova e nada se mostra, simplesmente ruminamos a informação impostas por alguém. A vida são as manchetes dos jornais. Uma das matérias contava a historia de um brasileiro que se jogou da ponte Battersea, o coitado tinha 43 anos e o jornal o chamava de lunático clandestino, mas acho que ele tinha suas razoes, ninguém se joga da ponte sem razão. Foi assim que eu vi sua historia:
Manuel não esperou o relógio lhe anunciar que seis eram as horas daquela manha, já estava a muito tempo de pe, a noite tinha sido estranha, não conseguiu dormir e as poucas horas que o fez, teve um sonho conturbado. Quando chegou a cozinha, viu os primeiros sinais do dia que chegava pela janela, viu as flores que começavam a surgir nos galhos da arvore, viu o primeiro fecho de luz rastejar pelo chão. Seus olhos lacrimejaram, não sabia o motivo, quis fugir dali, sair correndo, encarar o mundo, encarar os rostos nas ruas, mas que rostos iria cruzar aquela hora? Colocou a água para ferver, sentou-se e ascendeu um cigarro. Conseguiu dominar a angustia que lhe tomava o peito, pensou na vida, sentiu do de si mesmo, da sua situação, da vida que levava. “Miserável no Brasil, miserável aqui”, pensou. Lembrou das dificuldades que tinha em São Paulo, da humilhação que sofria e da poluição. Sentiu raiva e remorso. Manuel era cobrador de ônibus em São Paulo, por duas vezes fora assaltado durante o expediente, em uma delas foi espancado pelos bandidos que tinham pelo menos metade de sua idade. “Esse garoto tem a idade de Marquinhos”, pensou enquanto levava tapas na cara do marginal. A água acabara de ferver, colocou o café em pó na xícara e deixou a água se derramar, olhou novamente para a janela e tomou seu primeiro gole daquela mistura preta, olhou para a xícara e sentiu seu coração gemer. O dia mal começava e já tinha tanta magoa no café.
Ele não podia mais ficar ali, saiu desembestado porta a fora sem saber ao certo o que faria. Manuel estava infeliz, confuso e atordoado, carregava nas mãos uma bíblia e dentro dela uma foto de seus filhos e sua esposa. “43 anos e não sou capaz de dar uma vida descente aos meus filhos, o que ganhei o tempo levou, apenas me restou estas mãos calejadas e um corpo velho e cansado”. “E assim que trata seu filho Senhor, com abandono, fome e tristeza!” esbravejou apontando as mãos para o céu, esperando a resposta divina, como a um animal que espera o simples afago do dono, mas nada aconteceu. Deixou-se cair ao chão, os joelhos dobrados e as mãos sobre o rosto, queria esconder as lagrimas que saiam de seus olhos, não conseguia se controlar, já não tinha o controle do seu corpo e da situação. Esta era a resposta de Deus. No chão, a bíblia jazia aberta, Manuel aproximou os olhos e assim viu escrito: “Quem blasfemar o nome do Senhor será punido de morte: toda a assembléia o apedrejará. Quer seja ele estrangeiro ou natural, se blasfemar contra o santo nome, será punido de morte”. Era Levítico 24,16 que seus olhos acabaram de ler, aquela frase foi como uma sentença, uma ordem imperativa, talvez sua mente cansada não tivesse entendido o real significado daquilo tudo, talvez não entendera por pura ignorância. Manuel pensou que sua vida chegou ao fim.
Caminhou ate Battersea, la viu os parques e os jardins, as flores que brotavam e os esquilos que corriam de um lado ao outro, andou ate metade da ponte, parou e viu a água correr, fechou os olhos e viu o rosto de sua filha Mariana, sentiu o toque de suas mãozinhas suaves em seu rosto, escutou as vozes de seus outros filhos, sentiu o cheiro da comida que sua mulher preparava, sentiu seu coração encher-se de uma alegria que não era capaz de controlar, as lagrimas agora que rolavam em seu rosto era de felicidade, sentiu o vento, sentiu seu corpo ser esmagado, sentiu a água gelada invadir seu pulmão, sentiu todas as dores que eram possíveis, sentiu sua alma ser exorcizada e abandonar a carcaça que agora seguia a correnteza do rio. Quando a policia encontrou seu corpo, encontrou também um bilhete, não cabe aqui incriminar o cadáver por ser tão pouco criativo e se utilizar da técnica chavão dos suicidas que e o bilhete, porem vamos nos conformar com o que havia escrito naquele papel já quase em decomposição: “Se de tudo já não há esperança, se do meu suor já não sai o que comer, se nos meus olhos já não confio o caminho e se neste peito, o coração já tem preguiça de sentir, eu já estava morto, mas não sabia”
O resto foi conforme li no jornal, Manuel era brasileiro e estava trabalhando ilegalmente em Londres há seis meses, seu corpo foi encontrado boiando no rio Tamisa e segundo o legista, já se fazia três dias de sua morte quando a policia o encontrou. Cara, essas noticias me deixam realmente pra baixo. A vida são as magoas que tomamos no café.

Sunday 29 March 2009

Capitulo 4: A vida e um coração mastigado e depois renunciado

A fumaça subia e se perdia no ar, a cada trago meus pensamentos se confundiam e se perdiam, na boca o gosto de sangue e tabaco se misturavam. Pensei nas relações humanas e nas vidas que se misturam e se tornam uma só, pensei como certas relações são forcadas e fúteis, pensei no que dizem sobre o amor e não soube o que pensar. Fechei meus olhos e senti o vento tocar minha face, senti as dores de minha carne e a renuncia de meu espírito.
Fausto! Fausto! Você e o único namorado na face da Terra que dorme enquanto a namorada esta tomando sol na praia! Abri meus olhos, Rossela estava ao meu lado, estávamos na praia, o vento bagunçava o meu cabelo e a claridade me matava. Senti o cheiro do mar e o sol que queimava minha pele. Talvez eu seja o único namorado na face da Terra que saiba o que e o amor! Sorri. Ela tirou os óculos escuros e me encarou, encheu o peito de ar e ameaçou falar, mas se segurou, me deu um beijo e voltou a se deitar cobrindo o rosto com a toalha. Fiquei ali ao seu lado, olhando o mar e a ela e pensei que não havia como ser mais feliz que isso na vida. A vida são os sentimentos que invadem a alma sem avisar o coração. Rossela e a garota mais linda que já conheci, seus olhos grandes e castanhos que sempre me tiram o fôlego, sua boca pequena que esconde o maior sorriso que já vi e os cabelos lisos e escuros que contrastavam com a pele clara. Rossela e a poesia que os poetas sonham em escrever. Cara, eu não me cansava de admirá-la, vendo ela ali deitada na areia, poderia jurar que era o homem mais sortudo do mundo. A noite já anunciava sua chegada, com as estrelas apressadas e sol que desaparecia no mar.Vamos embora? Deixe-me apenas lavar os pés, ela me respondeu. Quando voltou ela passou seus braços em volta do meu pescoço, me encarou pela segunda vez, o mesmo ar veio ao seu pulmão, mas nenhuma palavra saiu, apenas seus lábios tocaram os meus e ficamos ali por um momento, sendo apenas um. Juntando toda coragem que ha no mundo eu segurei a sua mao e me arrisquei a perguntar se ela sentia o mesmo que eu quando lhe beijava.Ela me deu aquele sorriso tolo e disse “talvez, talvez...” A vida e a indecisão de se ser sol ou lua.
Era quase dia quando voltamos de um bar próximo da casa que estávamos. Tinha sido uma noite boa, bebemos e dançamos como duas pessoas de nossa idade faria. Estávamos exaustos, voltamos lado a lado, rindo um do outro e da vida. Eu não sabia que aquele momento seria a minha ultima recordação do que e felicidade. Ao entrarmos em casa, ela me puxou pela mao. Fausto! Ela me encarou pela terceira vez, um silencio tomou conta da sala que estávamos. O silencio durou alguns minutos e se desfez com o galo a anunciar o dia que viria. Com o silencio já rompido, ela começou a falar: Eu não posso mais continuar, me desculpe. Como assim? O que aconteceu? Fausto, você e uma pessoa maravilhosa, mas eu não consigo ser a namorada que você espera que eu seja. Não fale isso Rossela, eu te acho perfeita do jeito que e! As lagrimas escorriam sobre sua face. Eu não sabia o que fazer, eu queria segura-la em meus braços, dizer que tudo ficaria bem, que tinhamos um ao outro, comecei a falar dos nossos planos para o futuro, eu dando aula na universidade e ela com seu projeto de biblioteca publica. Quis falar da nossa ideia maluca de ter uma locadora de filmes alternativos e dos nossos filhos, mas ela retirou seu corpo do meu e me disse entre soluços: Eu conheci outra pessoa! E se não te traiu com meu corpo ainda, já te traiu com meus pensamentos, meu coração já divide o espaço que antes era só teu, já nao e em voce que penso quando me deito. As palavras me atingiram o peito, me tiraram a fala, não sabia o que dizer. Tudo ao meu redor ficou desconexo, perdeu sua forma e sua cor, fechei meus olhos e quando os abri vi tudo abstrato. A vida são as palavras ao acaso e a dor que se fingi.
Finalmente acordou dorminhoco, como você se sente? Onde estou? Aqui e o hospital St. Thomas, você foi encontrado desmaiado e com alguns ferimentos no corpo próximo a estação de Elephant & Castle, qual seu nome? Não encontramos nenhuma identificação com o senhor. Fausto. Como o escritor Fausto Miranda? Não, como Fausto, de Goethe, que fez pacto com Mephistopheles. O choque foi visível nos olhos da enfermeira, ela me deu um sorriso sem graça, desses que damos quando estamos constrangidos pela pergunta que fizemos e emendou: Querido, você tem alguém para que possamos ligar e avisar que você esta bem? Alguém deve estar preocupado contigo. Rossela, suspirei. Quem? Ninguém, eu não tenho ninguém. A vida e um coração mastigado e depois renunciado.

Sunday 22 March 2009

Capitulo terceiro: A vida e o horror estampado nos olhos de Deus ao se deparar com a verdadeira natureza humana

Finalmente o dia anunciava que eram seis as horas daquela tarde, finalmente o domingo se encerrava para mim. O caminho de volta sempre me parece mais triste, mais negro e conturbado. Não sei o motivo, mas eu nunca faço o mesmo caminho de volta para casa, acho que devo ter lido em um livro ou em uma bula de remédios, sei la, não importa também. Da livraria a estação de metro eram alguns passos, semáforos e pessoas que teria que encarar. Cara, isso e o que realmente me irrita na volta pra casa. As pessoas. E incrível como elas agem como se fossem animais de uma fazenda, aquilo me deixa louco. Eu sempre vejo um bando de vacas indo ao abatedouro ou porcos que vão se espremendo ate entrar no caminhão. E isso que somos, somos animais que renegam suas origens. Encontramos na racionalidade a desculpa para sermos insensatos, cruéis e carentes. Quando me vejo ali, no empurra-empurra, lutando para entrar no metro e que vejo como somos deprimentes. A vida e um animal em fúria. Talvez você não entenda e nem lhe forço a entender, mas toda essa gente, todo aquele aperto e toda aquela angustia apenas para se chegar em casa não faz parte da racionalidade que tão orgulhosamente julgamos ter e dizer ser o motivo principal que nos separa dos animais. Hum, era so o que me faltava, animais julgando animais. Fico a imaginar o dono destes animais, olhando, observando e se queixando. “Animais teimosos, não aprenderam nada, querem viver como porcos, que vivam como porcos então!”. Eu não me importaria se Deus quisesse vender sua fazenda, acho ate que seria melhor assim, não precisaria mais ter que participar da marcha dos pingüins só para alcançar minha cama.
De Waterloo a Elephant & Castle o caminho e curto, minutos que não chegam a ser dois dígitos. De la minha jornada continua por mais alguns minutos, esses sim já com dois dígitos. Ali, defronte a estação, espero o ônibus que me levara, as pessoas se protegem do vento como podem, aflitas por virarem cardumes novamente. Um rapaz se aproxima, no começo quase não ouço ou entendo o que diz, sei que tem alguma coisa em sua mao, parece ansioso e preocupado. Quer comprar um relógio bacana? O que? Quer comprar este Rolex? Meu amigo, mal tenho dinheiro para vestir as calcas que tapam as minhas genitálias, o que te faz pensar que tenho dinheiro para comprar um Rolex? Não, olha olha, te faço um preço bacana, quanto você tem ai contigo? Cara, leia meus lábios, não vou comprar esta merda falsificada que você pegou junto com os teus! Hei garoto branco, cuidado com o que você diz, você esta na minha área! A ameaça ou o perigo sempre nos faz pensar em qual atitude tomar, infelizmente eu sempre escolho as atitudes erradas. Porque você não enfia este relógio no cu e volta para sua área então? Bem nesta hora o ônibus chegou, todos embarcaram, mas quando fui entrar senti uma mao pesada que me puxava para fora do ônibus. Merda, la ia meu ônibus e agora estava apenas eu e o malandro. O que você quer meu irmão? Mal terminava a frase e outra mao me agarrava o pescoço, bravo, pensei, agora éramos quatro, eu e três rapazes com caras nada amistosas. A ultima vez que briguei em minha vida foi na quarta serie do ensino fundamental, cara e acredite eu nunca levo a melhor nestas coisas. Esta na hora de você aprender uma lição rapaz, acredite, todos os babacas do universo dizem isso quando estão prestes a dar uma sova em alguém. Você aprendera o que significa “Sentenca e punição”. O correto e “Crime e Castigo”. O que? “Crime e Castigo”, Fyodor Dostoiévski. O imbecil nem sabia fazer a citação correta e eu que recebia o castigo. O primeiro soco foi como um tiro de canhão bem na boca do meu estomago, o segundo acertou metade meu rosto e metade minha orelha direita, dali aos chutes e pontapés foram questões de segundos, ali me encontrava no chão estirado enquanto três pés nada delicados me atingiam sem rumo certo. Não sei porque, mas certas coisas sempre acontecem nas horas erradas, uma delas e o riso que queima as entranhas e se torna gargalhadas, por exemplo, não e muito bacana rir no funeral de um parente ou durante uma bronca de seu chefe, mas isso acontece e você nem sabe o motivo. Eu comecei a rir e minhas gargalhadas faziam apenas aumentar a fúria dos delinqüentes. Você e um filho da puta doente! Um deles esbravejou enquanto chutava minhas costas. Cansados, pararam e ficaram a me encarar rindo feito uma hiena desembestada. Deixe esse camarada, ele já teve o suficiente, e então começaram a se retirar. Com a forca que me restava levantei do chão e gritei: Entao e isso? Voces batem como putas de calçadão! Tudo bem, reconheço que mereci a volta furiosa de um deles e o soco bem aplicado na minha boca que me fez voltar ao lugar que estava a quinze minutos atrás, o chão. Agora estava sozinho no pavimento sujo e gelado, tirei um cigarro do meu bolso e pensei satisfeito dele estar intacto, acendi e olhei o céu, era a primeira vez que olhava as estrelas naquele ano, seria lindo se não estivesse com tantos hematomas no corpo. “A vida e um soco no estomago”, imaginei naquela hora se a senhorita Lispector sabia o que aquilo significava literalmente ou se ela apenas sabia qual era a “hora da estrela”. Realmente os Seres Humanos já não sabem mais o que e ser humano. A vida e o horror estampado nos olhos de Deus ao se deparar com a verdadeira natureza humana.

Sunday 8 March 2009

Capitulo II: A vida e o papel amarelado pelo tempo e carcomido pelas traças

Merda! Esse foi meu primeiro pensamento naquele domingo. Estava atrasado para o trabalho. A vida, velha safada de pernas abertas. O café com gosto de passado, a palidez e a frieza dos domingos desta cidade. “O trabalho enobrece o homem”, hum, queria pegar o sacana que falou essa besteira. Oito e meia da manha, estou na metade do meu caminho, preso em um ônibus cheio de cabeças que vagam em seus pensamentos e fones de ouvido. Não pensem que reclamo demais ou seu pessimista, mas não há nada mais depressivo do que ser obrigado a trabalhar num domingo onde poderia fazer nada em casa.
Quando me perguntam digo que sou escritor, que escrevo artigos para algumas revistas ao redor do mundo e quando a ironia esta demasiada atacada indago se elas lêem ou nunca viram meus artigos. Mas na verdade eu trabalho numa livraria especializada em livros raros ou difíceis de encontrarem deste lado do mundo. Cara, você não sabe como e um porre aturar aquelas velhas que vem na loja em busca de um exemplar raro de Shakespeare. “Querido, você tem aquele exemplar do ano de 1609 do ‘Bard of Avon’ chamado Sonetos?”. “Ser ou não ser”, nestas horas eu preferia não ser. Meu trabalho e entediante e simples. Eu limpo a loja, catalogo as obras que chegam, registro-as no computador e arrumo um espaço na estante para elas. A vida e o pó que se acumula sobre os livros ali esquecidos na prateleira. O problema não são as primeiras horas, o problema e aturar os clientes que pensam que por estar em uma livraria de exemplares raros precisam adotar um ar de superioridade e de paranóia intelectual. Como eu queria acertar um soco bem no meio da cara desses burgueses escrotos. O meu dia seria bem mais fácil se eles viessem, pedissem o livro que desejam e fossem embora. Mas não, toda vez o discurso nauseante sobre Eric Blair ou John Osborne, a importância dos poetas em tempos de guerra ou a supremacia da escrita inglesa. Tudo isso e lixo vomitado em minha cara. A maioria dos clientes são professores universitários de passagem pela capital, sedentos por ter uma preciosidade a qual possam se exibir aos colegas de trabalho. A vida e o papel amarelado pelo tempo e carcomido pelas traças.
Era quase quatro horas da tarde, a livraria estava para fechar quando ela entrou. Em todo o tempo que trabalho ali, nunca tinha visto alguém aparentemente da minha idade entrar na loja. Por um momento fiquei ali, parado, sem reação, apenas observando os movimentos e os gestos daquela garota. Com uma delicadeza que parecia exagerada aos olhos, seus dedos escorregavam pelos livros como se estivessem a tocar objetos sagrados. E assim foi prateleira por prateleira ate se aproximar do balcão. Hum... Ha... Posso ajudar? Ela me encarou pela primeira vez, acho que pela sua reação nem tinha notado minha presença. Não, se precisar de ajuda você saberá. Cara, aquilo foi pior que os discursos dos velhos que geralmente mofam por aqui. E a primeira vez que alguém entra nesta loja e não pede meu auxilio, aquilo, por incrível que pareça, me deixou com uma ponta de despeito e orgulho ferido, mas logo um sorriso veio ao meu rosto quando imaginei que talvez ela nunca iria achar o que precisava sem minha ajuda. Vamos ver ate aonde vai essa pequena, minha mente delirava. Mas do mesmo modo que ela chegou ao balcão, agora ela se encaminhava a saída. Naquele momento, milhões de coisas passaram em minha cabeça, minha mente buscava algo inteligente para dizer e a fizesse voltar, mas tudo que saiu foi “Não achou o que queria?”. Cara, como queria ser devorado vivo naquela hora, ela nem olhou para trás. Como uma miragem que nos aparece às vistas sem esperarmos e desaparece quando bem entende, e assim que me recordarei daquele momento. A vida são todas as outras palavras que os poetas escolheram ignorar.